Federação Nacional dos Médicos - 25 de Abril - Flipbook - 19
µ 19 | FNAMZINE | abril 2024
Um SNS tendencialmente gratuito, que é aquilo
em que nós acreditamos, e que seja capaz
de proporcionar qualidade e ausência de doença
aos cidadãos, é a função de todos nós no SNS.
Parte importante dos problemas
que assinala são problemas que não
começaram com o anterior governo,
são problemas que se avolumam
nos últimos 10, 20 anos. Face a isso,
porque é que os médicos se mobilizaram como vimos tão bem no ano
passado e não o fizeram nas décadas anteriores?
Penso que as coisas estão de fato
em degradação contínua, como diz,
há vários anos. Mas depois de muitos anos de sacrifício tivemos que
enfrentar uma pandemia, e os profissionais de saúde, em particular
os médicos, mostraram à população e aos políticos que são capazes
de se superar, e são profissionais altamente qualificados. Finda a pandemia, certamente muitos de nós
esperávamos que a Saúde passasse
a ser olhada de outra maneira, com
mais justiça, e não com olhos políticos. Isso não aconteceu. Voltámos
a ser destratados, maltratados sobretudo pela tutela. Tudo isso levou
a que os médicos entendessem que
era o momento de denunciar à população o que é que se estava a passar, e explicar que o acesso à saúde
está verdadeiramente em causa e
caso nada aconteça provavelmente
cessará nos moldes em que nós a
conhecemos. Se assim for, nós estamos convictos que nos próximos 10,
15 anos, será de tal forma gritante a
destruturação do SNS que o acesso à Saúde estará em causa e não
não teremos um SNS a que recorrer.
Achamos que faz parte do nosso juramento de Hipócrates a defesa do
nosso doente e o nosso doente são
todos os cidadãos portugueses, daí
o nosso compromisso em alertar
para aquilo que se passa e aquilo
que nos espera.
Num estudo de opinião feito no final de 2023, 62% da população estava ao lado das reivindicações dos
médicos. Podemos concluir que a
população compreendeu a mensagem? O que é que acha que aconteceu para que tal fosse possível?
Eu creio que parte da mensagem
que nós queremos levar ao público
passou, as pessoas compreenderam. Compreenderam fundamentalmente que a nossa luta não era
apenas por aumentos de salários,
mas sim para se criarem as condições para fixarmos médicos no SNS.
Penso que a população que precisa de assistência médica, que tem
doenças crónicas e que recorre ao
SNS, tem a melhor impressão do
SNS, ao contrário daquelas que só
recorrem ao SNS em situações de
urgência, serviços que estão como
sabemos altamente destruturados.
Acho que as pessoas sabem que
têm nos seus médicos alguém em
quem podem confiar e se os médicos conseguiram construir um movimento desta dimensão para lhes
explicar o que é que se passa, é porque efetivamente alguma coisa de
sério se passa. A população acredita certamente mais nos médicos do
que acredita nos políticos.
A população
acredita
certamente mais
nos médicos
do que acredita
nos políticos.
Na sua unidade de trabalho, no Hospital de
Penafiel, quando é que se apercebeu que o
movimento de recusa em exceder as 150 horas
extraordinárias por ano ganhou dimensão?
Nós em Penafiel, particularmente o serviço
de Cirurgia, do qual faço parte, fomos dos primeiros a aderir às minutas. Eu acompanhava
o que se estava a passar em Viana do Castelo,
onde tudo começou, e a determinada altura
achei que fazia todo o sentido. Inicialmente
fomos cinco médicos, mas rapidamente todo
o serviço foi contagiado por esta causa. O que
nós queríamos era garantir que o Ministro ia
ouvir os médicos, negociar com os sindicatos.
Ficámos na expectativa de termos um Ministério que se empenhasse em salvar o SNS, mas
tal não aconteceu. O interesse político mostrou-se mais importante do que a Saúde dos
cidadãos. Os MEL foram absolutamente contra
o acordo intercalar que foi feito por um dos sindicatos, nunca nos representou, de todo. Inclusivamente, na sequência disso, houve vários
colegas que manifestaram o seu desagrado,
saindo do sindicato que fechou esse acordo,
porque se sentiram defraudados e enganados.
Pareceu-nos efetivamente um acordo político, e não um acordo para a defesa do SNS e do
trabalho médico. Foi um pseudo-acordo, para
haver uma saída política limpa. Nós não somos
políticos, nunca foi esse o objetivo, e por isso
foi um acordo que não nos representou.
Não tendo havido um acordo satisfatório, como é que vê que as coisas se possam passar em
2024? Os médicos vão continuar a sua luta?
Em 2024 esperamos que seja possível sentar-nos, voltar às negociações, e elencar os problemas do SNS e das reivindicações dos médicos. Admitimos que vá haver mais instabilidade política e que isso prejudique as hipóteses
de se chegar a bom porto. Temos que estudar
as formas que vamos adotar para fazer ouvir
a nossa voz e penso que as preocupações da
população relativamente à saúde se mantêm,
posto que nada foi resolvido. As ULS foram
precipitadas, estão a causar muito desequilibro e ajustamentos, e nós não temos visto melhorias e certamente os doentes também não.
Não podemos desviar a nossa atenção para o
mais importante, que é uma restruturação de
condições de trabalho, perspetivas de futuro
para a saúde e de acessibilidade dos cidadãos
ao SNS. Nada disto está conseguido pelo que
vamos continuar a lutar.
Não estando isso conseguido, os médicos vão
continuar a recusar exceder o limite legal de
horas extraordinárias?
Tanto quanto sabemos é que mesmo no fim de
2023 e 2024 deixaram definitivamente de fazer
horas extraordinárias. Muitos daqueles que,
por várias, razões, já não são obrigados a fazer nenhuma, seja por idade ou outras razões.
Antes esses médicos, sem terem que o fazer,
continuavam a fazer noites e horas extraordinárias, mas agora não querem mais por tudo
aquilo que se passou no último trimestre de
2023, que deixou claro que não houve empenho das forças políticas em resolver o assunto.
Portanto, não somos nós médicos, que vamos
assegurar os problemas que a tutela não quer
resolver. Hoje em dia, mesmo sem se esgotarem as 150 horas, há vários serviços condicionados, por falta de médicos para preencher as
escalas, sobretudo nos serviços de urgência.
E não estou só a falar do Hospital de Penafiel,
isto passa-se em várias unidades de saúde em
todo o pais. Isto tem muito impacto na qualidade assistencial.
O que diria ao próximo Ministro ou Ministra da
Saúde?
Diria que seria importante deixar uma marca
significativa, indelével, no SNS. Para a posteridade. Que o diálogo é importante. Um diálogo honesto e pragmático com os médicos
e com as instituições que os representam, e
não tentar fazer regras transversais a todos os
hospitais posto que cada um deles tem uma
realidade diferente, e servem populações com
especificidades distintas. É preciso encontrar
em cada local a forma mais adequada para
um hospital funcionar bem, e boa articulação
com os centros de saúde. Precisamos de um
bom trabalho técnico, nem tanto de um bom
político, só assim teremos uma medicina de
qualidade. Que deixe uma pegada positiva e
a vontade de fazer a mudança que precisamos
para salvar o SNS, que não se limita à introdução de dinheiro.
UM SNS DE QUALIDADE
Como viu esta campanha eleitoral e nela o debate sobre a saúde?
Nesta campanha eleitoral que passou, e
apesar da saúde ser uma preocupação
importante da maioria dos cidadãos,
não houve uma discussão séria e aprofundada sobre o assunto, com nenhum
painel de pessoas que realmente com-
preendam o assunto e sejam capazes de
elencar soluções sérias para o futuro.
São todas soluções de pensos rápidos
para cativar votos. Enquanto a saúde
for discutida nesta ótica nós não vamos
conseguir reverter a situação.
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