Federação Nacional dos Médicos - 25 de Abril - Flipbook - 21
µ 21 | FNAMZINE | abril 2024
“É PRECISO RECRUTAR
MAIS MÉDICOS E GARANTIR
QUE ELES FICAM NO SNS.”
Estavam a acabar com este bem
precioso, este bem maior que é o SNS,
de todos e para todos, com qualidade.
Esse desgaste, esse cansaço que identifica, foi também outra das razões que
levaram os médicos a recusarem fazer
mais do que o limite legal das 150 horas
extraordinárias?
Foi preciso criar a onda. Havia muita insatisfação, isso era evidente. Não ganham
de forma ajustada ao seu trabalho, trabalham muito e fazem muitas horas extra
para conseguir ter um salário digno. Esta
combinação de fatores levou-as a ir para
o estrangeiro ou para o setor privado. Os
que ficaram estavam muito desmotivados,
e isso nota-se bem em termos de equipas
de trabalho, onde fica tudo mais difícil.
O que faltava era unir as pessoas: vamos
fazer alguma coisa! E acho que foi isso que
foi conseguido. Já ninguém aguentava isto.
Estavam a destruir os médicos, mas também o SNS. Este foi um sentimento importante na nossa unidade. Estavam a acabar
com este bem precioso, este bem maior
que é o SNS, de todos e para todos, com
qualidade. Para nós ficou claro que isto está em causa se não for feito o devido investimento. Este sentir de abandono do SNS,
o descurar dos seus recursos humanos,
somado à questão dos salários, as pessoas
acharam que não havia mais tempo para
esperar e tomaram a iniciativa.
Como é que tudo se passou em Viana do
Castelo, na ULSAM, o grande epicentro do
movimento das minutas? Como, quando e
porquê é que o movimento ganhou tanta
dimensão?
No meu serviço, os cuidados intermédios
da medicina intensiva, não foi dos principais, nem foram dos primeiros a aderir. O
movimento foi sobretudo forte na medicina interna e na cirurgia, com fechos sistemáticos ao fim de semana, ao longo dos
dois últimos meses de 2023.
A ULSAM tem muitos jovens médicos, que
faz um volume muito grande de horas suplementares, muitas mesmo, alguns faziam 700, 800, 1000 horas suplementares.
Viana tem também uma realidade onde a
atividade sindical é forte, temos muitos
colegas atentos. Os delegados sindicais
do Sindicato dos Médicos do Norte e da
FNAM estiveram sempre atentos e tiveram
o cuidado de partilhar a informação com
os colegas sobre o que se estava a passar
nas negociações.
Desde março, quando se fez a primeira
greve, nós falámos sistematicamente com
os colegas, íamos aos vários serviços, fazíamos as greves e fomos muito mobilizados à manifestação. Viana estava muito
bem informada de tudo o que estava a
acontecer.
Nunca se planeou o que viria a suceder, da
constituição dos MEL, quando estávamos
a divulgar a greve e a manifestação, mas
a verdade é que quando o governo deu
por encerradas as negociações sentimos
que tínhamos que fazer algo. No verão, as
pessoas começaram a sentir que as greves não bastavam e que era preciso mais.
Ir a Lisboa não bastava. Reuniões atrás de
reuniões e o Governo não dava sinais de
que ia ouvir os médicos. Aí foi claro que tínhamos que fazer algo para dar mais força
aos sindicatos.
A FNAM já tinha há muito tempo sugerido para não fazermos mais do que o limite legal das horas extraordinárias, e o
pessoal começou a aderir. Sabíamos que
em todos os hospitais tudo estava muito
dependente das horas extra. A partir daí
foi uma bola de neve que aumentou de tal
forma que nem nós conseguíamos prever,
ou achar que era possível tantos médicos
terem aderido de norte a sul do país, mesmo com a falta das horas suplementares a
terem um peso importante no rendimento
dos médicos.
Já em 2024, mesmo sem as minutas das
150 horas, posto que a maioria ainda não
atingiu esse limite, vários serviços têm
tido dificuldade em fazer as escalas. Como se explica?
É a demonstração que a falta de médicos
é estrutural.
A certa altura das negociações, quando o governo estava entre a espada e a
parede, surge a crise política e com ela
o ministério passa a recusar negociar as
questões relacionadas com as condições de trabalho, limitando a negociação à questão salarial. Como é que viram
isso? Ponderaram mudar as formas de
luta?
Houve muitas dúvidas, tenho que ser
honesta, quando o governo caiu, sobre
se valia ou não a pena continuar. Houve
muitas opiniões diferentes, mas a maioria realmente não queria parar, e queria
continuar a mostrar a fragilidade em que
estava o SNS, e que não havia condições
para continuar tudo na mesma. É preciso
recrutar mais médicos e garantir que eles
ficam no SNS. Se nós voltássemos atrás,
ainda mais depois do acordo com o SIM
que não nos agradou, ia passar a ideia
que estava tudo resolvido quando isso
não era verdade. Mantivemos a nossa
posição e foi isso que aconteceu. Se nos
calássemos ninguém ia falar de saúde
durante a campanha, e acabou por ser
dos temas mais falados.
Como interpreta que a maior parte da
população tenha estado ao lado das
reivindicações dos médicos? O que fez
passar bem a vossa mensagem?
Passou bem, mas devia ter passado ainda
melhor, posto que a população, apesar
de compreender a situação, não teve o
comportamento que eu esperava, sobretudo quando começaram a encerrar os
serviços.
Eu achava que nessa altura, perante os
serviços de urgência encerrados, se iria
manifestar contra o Governo de uma forma muito mais expressiva e contundente
do que aquilo que aconteceu. Em todo o
caso, porque acabou por se falar tanto
em saúde, começaram a perceber a realidade.
As pessoas não imaginavam que um médico especialista ganhe 1700, 1800 euros,
achavam que ganhávamos 5000. Não
sabiam que os internos ganham 1300
euros, num tempo em que um apartamento custa quase 1000 euros. As pessoas não tinham noção desta injustiça. A
informação foi crucial, mas gostava que
a população fosse mais expressiva. Não
que fossem para a rua para que se pagasse
mais aos médicos, mas que, quando encerraram os serviços, saísse em defesa das
urgências e do SNS.
Disse que o acordo não foi satisfatório.
Podemos daí concluir que os médicos
vão continuar a lutar em 2024 como o fizeram em 2023?
Estamos outra vez na expectativa, para ver
como é que o novo Governo se comporta
com os sindicatos. Ou seja, queremos que
se entendam, que encontrem as soluções
que precisamos. Ninguém gosta de ir para
a luta só por lutar.
Não desejo ir para Lisboa outra vez, ter
que fazer greves nem declarar indisponibilidade às horas extra, mas se o governo
não ouvir os sindicatos e não negociar é
o que iremos fazer de novo. Espero que
assim que haja governo chamem de imediato os sindicatos para negociar, e estaremos muito atentos a esse processo para
decidir como proceder em função do que
venham dizer os sindicatos. Os médicos
continuam muito atentos, caso não haja um roteiro negocial que os sindicatos
aceitem, e houver seriedade do próximo
Governo aguardamos, caso contrário retomaremos as formas de luta.
Se pudesse dizer algo ao próximo Ministro ou Ministra da Saúde, o que lhe diria?
Diria para convocar negociações com os
sindicatos para tentar salvar a carreira
médica e o SNS. O SNS é um bem maior
que não podemos desperdiçar. É preciso
salvar o SNS, e neste momento, a palavra
salvar, é mesmo salvar, porque o SNS está
numa situação mesmo muito delicada, e
caso não seja salvo agora pode tornar-se
impossível de o recuperar no futuro. A situação e emergente! Ou o salvamos agora
ou não vai ser possível salvar mais tarde.
Se não houver investimento, vontade política de salvar o SNS, vamos perder este
bem maior que nos orgulha a todos de
fazer parte e de oferecer à população um
SNS com qualidade e acessível para todos.
Está em risco e não temos mais tempo para esperar. Os MEL surgiram para dar mais
força aos sindicatos, não temos ambições
pessoais, queremos que os sindicatos
consigam chegar a acordo com o Governo
para salvar a carreira médica e o SNS.
É preciso salvar o SNS. Ou o salvamos agora
ou não vai ser possível salvar o SNS mais tarde.
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